Sobre L’Arminuta – A Devolvida (Trad. Mario Bresighello, Faro 2019)

A Devolvida, a Ariadne do mito grego

por Iara Regina Shemes

O contexto em que se desenvolveu a leitura compartilhada de L’Arminuta, livro proposto na disciplina de Língua Italiana pela professora Patricia Peterle, coincidiu com o auge da epidemia e isolamento social, em 2020, circunstâncias que nos remetiam ao medo e à solidão, à falta de contato com pessoas próximas, à vivência do desconhecido que foi para todos a Covid-19, às inevitáveis perdas e à sombra da morte.

Nessa atmosfera dividimos, talvez não de maneira intencional ou direta, esse assombro, entre nós, participantes desse pequeno “clube de leitura”, e, ao mesmo tempo, com as personagens do livro, o que fez com que nos tornássemos mais próximos delas, apesar da distância temporal e geográfica da Itália dos anos 70. Algo daquela atmosfera se tornou familiar, enquanto identificávamos os fios condutores da narrativa: a luta pela sobrevivência em meio à dor, o luto, o vazio do não pertencimento, a desigualdade social, a culpa, as escolhas conscientes ou inconscientes (no caso das duas mães), a impossibilidade da escolha (no caso da Devolvida), arrastada pelas decisões dos adultos por quem foi gerada e criada. Temas que nos tocam, individualmente, a partir das nossas próprias histórias de vida e, de maneira universal, pela nossa humanidade compartilhada. E podemos aqui elencar, inevitavelmente, o abandono, pensado como um estranhamento de si mesmo, a perda das referências externas que atuam como guias internos, que nos reasseguram diante dos conflitos e do perigo iminente. O chão abaixo dos nossos pés, céu estrelado acima – estrelas como guias para os viajantes de todos os tempos.

A jovem de treze anos vivencia a perda de todos os referenciais de que até então dispunha, as certezas básicas estilhaçadas. Como na cena em que estilhaça o vidro, no rompante de raiva, em busca das respostas que lhe eram negadas, sobre a verdadeira história que fez com que fosse lançada improvisamente no turbilhão – ou ainda, no labirinto.

A Devolvida seria, nessa perspectiva, a Ariadne do mito grego – aquela que entrega a Teseu o fio dourado capaz de garantir o retorno seguro pelos meandros do labirinto da ilha de Ítaca. Ela está em busca desse fio, ou encontra-se no lento processo de confeccioná-lo, nos momentos em que se sente perdida – em seu próprio labirinto. Assim como os pares desencontrados na sacola de sapatos que trazia consigo, que poderiam andar em direções opostas. A disparidade entre a existência das duas mães confunde os caminhos para o lugar interno onde se reconheça, onde possa lembrar do seu nome e ser chamada por ele.

Devolvida… de quem para onde? Retornar… para quem, em que direção? Perguntas sem resposta óbvia, quando já se perdeu o ponto de partida.

Do ponto de vista etimológico a palavra adolescência deriva do latim e pode ser pensada como crescimento ou estágio de expansão ou mudanças. Sabemos que essa fase do desenvolvimento representa em si mesma um período de luto. De um lado, a morte simbólica da criança, que deixou de ser, que cresce, em constantes transformações até a idade adulta. De outro lado, a morte simbólica dos pais, pela adolescente, a fim de reconhecer sua própria individualidade.

Iara Regina Shemes

L’Arminuta, por sua vez, experimenta esse luto duplicado, ao se perceber como “órfã de duas mães vivas” (referência extraída do livro), o que nos dá ideia da distância supostamente insuperável que a separa das duas mães. Seria inútil mover-se em qualquer direção na tentativa de alcançá-las, as separações resultando no distanciamento de si mesma.

Nel tempo ho perso anche quell’idea confusa di normalità e oggi davvero ignoro che luogo sia una madre. Mi manca come può mancare la salute, un riparo, una certezza. È un vuoto persistente, che conosco ma non supero. (…) La sola madre che non ho mai perduto è quella delle mie paure. (cap. 23, p. 100)

Temos, inicialmente, a identificação com a mãe idealizada, Adalgisa – boa, perfeita, elegante – em contraposição à mãe má – desprovida de um nome, rude e limitada pelas condições sociais menos privilegiadas. Ambas as posições caem por terra quando a filha se defronta com a verdade, a carne crua por debaixo da pele, literalmente. Morre a mãe idealizada, enquanto o tempo propicia, por outro lado, o vínculo afetivo com a mãe biológica. As duas mães vão se transformando, aos olhos de L’Arminuta, em pessoas, seres humanos reais, falíveis.

Sabemos que ela encontra a força para enfrentar os monstros internos – do centro do seu labirinto – através da cumplicidade com a irmã, Adriana. Talvez tenham fiado juntas esse fio, consistente, resiliente, enfrentando o dragão das adversidades, da família sofrida, dos longos silêncios do que é inominável, das noites intermináveis de angústia.

Envolvidas pelo mesmo tecido de origens e trajetórias, aprendem a resistência, na iminência de tornarem-se mulheres. As extremidades do fio, desprendem-se, na superfície

                                                                tremulante do mar.